quarta-feira, 9 de maio de 2012

ARMANDO ALVES

“Justiça”
Serigrafia
52x35 cm
275,00 €


Traz nos olhos a largura amplíssima da charneca alentejana e rodeia os gestos de uma calma melancólica, de fim de tarde. Estamos com Armando Alves. Pressente-se o reconhecimento do avizinhar da noite e faz-se desejar o interior da paisagem, a sua intimidade. No Alentejo ele nasceu. Ali conheceu terra e luz, homens e bichos. Embora radicado no Porto, do torrão não se despega. É a motivação dos seus quadros, diz. Mas para além do pretexto, «tem de acontecer a pintura», acrescenta.


De facto, entrevistado em 1983, advertia Armando Alves: «a pintura não é só motivação. É também acto: quadro, realização. E, aí, as coisas complicam-se de verdade».
No atelier do artista, conversando, vamos tentar descomplicar as coisas o mais possível. Estamos num rés-do-chão de prédio ainda novo. Vasco Graça Moura, que há meses nos precedeu, situa-o «ali para a Quinta Seca, ao descer da Circunvalação para Matosinhos». À entrada, o visitante passa entre quatro telas, duas de cada lado e uma de cada um de «Os quatro Vintes». Em estantes próximas, colecções de barros de Estremoz, o sabor da terra natal. Diversas pinturas inacabadas, de grandes dimensões, poisam ao acaso. Armando anda com elas às voltas desde há tempo: pinta-as e repinta-as, teimam-lhe em não ficar prontas. Outras quatro estão em fase de execução com vista a «bienal» em Espanha.
Naquela mesma entrevista, de 1983, publicada inédita no álbum «Aproximação ao silêncio» (1987), Armando Alves explica-se: «O que pretendo transmitir não é, nunca foi, uma paisagem naturalista, mas sim toda a «carga» de impressões, sentimentos, conhecimentos». (…) «Exemplos? Um cheiro. Um sabor a terra molhada. O calor que se inscreve num gesto que pode ser um rumor de vento, de pássaro… Sim: eis o que movia. Pequeninas coisas de um quotidiano familiar a que não é estranha a relação com o outro e a riqueza sempre renovada que vem dessa relação».
Num breve relance, o artista resume a sua evolução pictórica de uns bons 30 anos, os primeiros quadros de índole figurativa com laivos cubistas, depois as abstracções e logo, em sucessão, composições com recurso a cores puras e luminosas, a fase do Arco-Íris, uma entrega total à cor e à criação de transparências, atmosferas, paisagens que sentimos a respirar como nós, ao nosso hálito.
Enfim, depois das hesitações iniciais, da exploração e apropriação da linguagem plástica, Armando Alves segue um caminho, o seu. Marca-o a coerência: o artista fala-nos da necessidade conseguir uma recriação das coisas com sinceridade, procurando realçar com intensidade os valores universais. Ouvimo-lo:
«Tenho que tornar cada quadro numa obra de arte em elementos de composição, cores, etc., independentemente de aquilo que a motivou, do seu ponto de partida. Ele tem que falar a um japonês como falará a um alentejano.»
Armando diz que sempre sentiu a arte «de uma forma romântica, com atitude séria», até por causa das circunstâncias difíceis do tempo e lugar onde começou. Ele, tal como outros artistas – recorda -, teve que arranjar outras formas de sobreviver, recorrendo ao ensino, às artes gráficas, etc. Num desabafo: «Gostaria de só ter pintado na vida, porque é muito mais difícil fazer tudo o que eu fiz».
Vasco Graça Moura, no álbum citado, refere-se a um «Armando Alves professor da ESBAP, decorador, galerista, fotógrafo, autor de posters, panfletário, gráfico, desenhador, sei lá…». Quanto à função de galerista (desde fins de 1986), justifica-a: «Entendi que ela (a galeria) suprimia determinadas lacunas existentes na cidade e procurei imprimir-lhe uma dinâmica especial para dignificar os artistas e o público ao qual a arte se dirige.»
O atelier envolve-se no sossego do exterior. A luz espalhada infiltra-se por telas verticais dispostas perto dos vidros. Armando evoca-se, enquanto aluno da ESBAP, na distante transição dos anos 50-60, fala da «sorte» de ter tido bons professores (Dordio, Augusto Gomes, Resende, Sousa Felgueiras) e colegas, dos ateliers que com estes teve desde o primeiro ano escolar. Aí aprendeu «a tal oficina», como se fazem as coisas. Mais tarde, na docência, procurou transmitir esse saber, incentivando a aprendizagem, a necessidade das descobertas.
«A arte tem de trocar ideias e conhecimentos – diz. – No fundo é comunicação entre as pessoas. Em cada pintura que faço procuro uma superação da anterior. Cada quadro deve ter de facto um elemento novo de composição, para conseguir a evolução que todo o artista deseja.»
A necessidade das descobertas, em suma. Para avançar. A consciência de uma arte sempre sincera e verdadeira face aos elementos de que dispuser em cada caso.
Daí o dizer de Fernando Pernes, impresso também naquele álbum: «De facto, formulada no apelo ao intuitivo, a sua pintura desperta-nos a memória do que de mais longínquo somos e esquecemos. Talvez por isso, estes quadros reconduzem-nos Àquele sentido da arte que apenas raros mestres do humilde e do sublime souberam articular, numa consciência estética, simultaneamente intimista e coral, irmanando a substancialidade telúrica ao mistério lírico.»
No mesmo sentido, poderá ver-se em Armando Alves, dotado com a sua boa corpulência, ou na sua pintura, uma orquestração infinita dos quatro elementos naturais, a terra, o ar, a água, e sol (que é fogo), constantemente recriados, multiformes, policromos e musicais.
Ainda no texto de Vasco Graça Moura, são de sublinhar duas linhas que falam de «um ressentimento quase subliminal das pontes entre o abstracto e o figurativo, entre a caligrafia e a representação» na pintura do artista. E, de Óscar Lopes, também são de reter duas linhas: «Os (seus) quadros vêem-nos e o que neles procuramos é um olhar que nos veja até ao fundo dos olhos e seja mais nosso do que o próprio olhar.»
Armando Alves aprecia especialmente o que os homens de letras têm escrito sobre os seus quadros. Fez até questão de exarar pelo seu punho, na «Aproximação ao silêncio»: «São os escritores, os artistas quem falam melhor do que eu faço, da presença da paisagem do Alentejo, da semente que nasce, do bando de pássaros que revoa na seara…»
A conversa centra-se agora na questão do lugar da nossa crítica de arte. O artista afirma que não há crítica mais severa do que a própria autocrítica. Cortante, prossegue:
«Com toda a sinceridade, ela não me importa nada, não lhe dou grande importância. Não passa de uma série de lugares-comuns em moda. Na crítica, como em arte, há modas, os críticos repetem-se em círculos fechados e isso fá-la morrer à nascença. É bom que haja sempre uma renovação e nós não vemos renovação em lado nenhum. Há excepções, que confirmam a regra.»
Armando considera que os críticos deviam produzir textos claros e acessíveis, não herméticos. Deviam procurar convivência com os artistas, que não têm, pois «não sabem como se faz uma pintura, só de teoria». Acha que «a tal oficina» os habilitaria a escrever de outro modo. Assim, eles «falam do que não entendem ou só entendem de maneira teórica», isto na generalidade dos casos.
A crítica de Armando aos críticos - «meia dúzia de pessoas» - alarga-se: não compreendem os artistas da geração anterior, com provas dadas, favorecendo artistas jovens. Exemplifica com Júlio Resende. «Um grande pintor, não precisa que o digam, mas os jornais são veículos importantes de comunicação, também pode matar-se pelo silenciamento». Armando acrescenta:
«Nos outros países, há mais gente a fazer crítica, aqui há bastante menos, e eles, em círculo fechado, repetem-se, esquecendo que os novos ficam velhos num instante.»
Todavia, o público «sabe o que deve preferir». Sente, porventura, que a obra dos artistas consagrados se desenvolve em coerência e, portanto, eles «não podem dar saltos, acompanhar as modas como se jovens fossem». Enfim, existe hoje um mercado para a arte. Portugal acompanha assim outros países.



Armando Alves, com 52anos, reparte-se actualmente por uma oficina de restauros e molduras, trabalhos de arte gráfica e galeria. A sua pintura fica para os sábados e domingos, ou outros tempos que uma grande disciplina, sua preocupação constante, consegue inventar. Nasceu a 7 de Novembro de 1935, em Estremoz. Concluiu o curso na Escola de António Arroio, em 1954. Passados dois anos expôs pela primeira vez em Lisboa e na Póvoa de Varzim. Concluiu o curso da ESBAP em 1962, sendo convidado para professor assistente. Em 1965 fez a primeira exposição individual no Porto. Constituiu em 1968 o grupo «Os Quatro Vintes», com Ângelo de Sousa, Jorge Pinheiro e José Rodrigues. A sua obra espalha-se pelo país e estrangeiro.

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