terça-feira, 17 de abril de 2012

ISOLINO VAZ

“Família”
Tinta-da-china
39x26 cm
900,00 €

CINQUENTA ANOS DE FIDELIDADE
Uma parte importante do coração da minha juventude pertence a Isolino Vaz e à sua obra; através dos volumes, dos ângulos, da luz sombria e da luminosa sombra do seu transfigurado realismo, os meus olhos descobriam perturbadamente o lado obscuro das coisas que só a inocência da arte revela.
A obra de Isolino Vaz foi então isso para mim: revelação. E exemplo do radical inconformismo donde nascem, como na obra de Isolino Vaz emoções temíveis. Eram dias difíceis em que a felicidade era feita de infelicidade e de solidariedade. A obra inquieta de Isolino testemunhava que não estávamos sozinhos e partilhava connosco o confuso sentimento épico da esperança.
Porque na geometria dessa obra, mais do que mera expressão, e mais do que repro­dução, vibrava, e vibra, o próprio efémero mistério da realidade, o que quer que seja a realidade. O modo como, sob uma luz obstinadamente racional, os fragmen­tos do mundo exterior se tornam na pintura de Isolino harmonia e sentido do lado de dentro do mundo, fizeram naturalmente dela o caminho mais curto para as inse­guras interrogações que irreprimidamente pulsavam no grande coração colectivo. A Arte serve também para isso, para nos confrontar e para, em tempos de angústia, testemunhar por nós perante nós próprios. Por essa fidelidade, por essa desmesu­rada generosidade, quero que este depoimento seja, mais do que uma improvável avaliação crítica, sobretudo também um testemunho emocionado pela Arte de Isolino Vaz. Isto é, pela Arte.
Manuel António Pina
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Conheci Isolino Vaz no verão de 49. A admissão a Belas-Artes passava então por uma prova de desenho de estátua. Alguém me aconselhara a tentar um período de aprendizagem no seu estúdio. Desenhava desde criança, mas a técnica estava limi­tada ao lápis Viarco sobre papel Costaneira, Almaço raramente, sob a direcção e ao colo de um tio que não sabia desenhar. Depois de me exercitar em caixas fechadas e abertas, cavalos de perfil e gatos frontais, sem idade para colo, orientara a produ­ção ao retrato: família e vizinhos disponíveis.
Confrontava-me subitamente com a obrigatoriedade de um salto qualitativo aterra­dor: do Viarco ao carvão e do Almaço ao Ingres. As primeiras dificuldades come­çaram com a procura do material aconselhável, correndo ao acaso e em vão as papelarias de Matosinhos e do Porto. Mais tarde experimentei a fragilidade do car­vão e a aspereza do papel. Definitivamente desmoralizado, apresentei-me no atelier de Isolino Vaz, em frente à Quinta de Nova Sintra, no sotão de uma dessas hones­tas casas portuenses, três pisos em cantaria e reboco cinzento, janelas de madeira de perfil elegantíssimo. Fui admitido e iniciaram-se as aulas. Éramos quatro e passávamos as manhãs entre Deuses e Imperadores de brancura imaculada. A janela da sala abria sobre o Rio Douro. O sol, o verde dos campos, e um ou outro solar semi-arruinado entravam por ali dentro, enquanto Isolino Vaz nos ensinava coisas inesperadas: como fixar o papel na prancheta, como apagar traços, errados com miolo de pão, como abrir um branco cristalino, como semi-cerrar os olhos ou apreender, braço estendido, as proporções exactas.
Tinha uma técnica de precisão impressionante: figuras nitidamente recortadas sobre o papel, em linhas rectas, zonas de sombra delimitadas por dois traços finíssimos, logo preenchidos pelo carvão deitado; rápido afago, por vezes com o flanco da mão, produzindo uma meia tinta de transparência absoluta sobre a textura inalte­rada do papel Ingres.
As duas primeiras semanas foram difíceis: o carvão afiadíssimo partia, a meia tinta manchava, a bola -de miolo de pão agarrava-se ao papel ou aos dedos; os Deuses troçavam de nós, distorcendo constantemente o sorriso sereníssimo, aumentando a altura da testa ou revolvendo tumultuosamente os cabelos encaracolados.
No fim da segunda semana Isolino Vaz levou-nos à praia de Leça. Não se falou em desenho. Jogamos a bola e corremos contra o vento, até ao limite do fôlego. Deita­dos na areia, seguimos com olhos espantados as passagens constantes e cadenciadas de um Mestre sem fadiga, até que o céu e o mar se fizeram lílazes.
Provavelmente este exercício preparava uma nova aprendizagem: como fixar o car­vão, que sempre ameaçava seguir a brisa da janela sobre o Rio Douro. Compramos um objecto incrivelmente engenhoso: dois tubos de metal de 3 milímetros de diâme­tro e 100 milímetros de comprimento, articulados, para mais fácil transporte em caixa de cartão branco. Introduzia-se uma ponta no frasco de fixativo Legrand, comprado na papelaria Azevedo; na outra soprava-se com brandura. O sopro devia ser contínuo e de igual intensidade. Nas primeiras experiências as superfícies som­breadas do carvão tornavam-se baças, pontilhadas por estranhas manchas orgânicas, ou empastadas, ou brilhantes aqui e ali, ou amareladas, como verniz barato sobre as madeiras da Rua da Picaria, ou como o papel de um cigarro sem filtro e mal fumado.
Isolino exemplificava. No contra luz da janela uma fina poeira doirada pulsava, mansamente, sobre Atletas, Imperadores, Deuses e Cortesãs.
Pouco a pouco, quase sem dar por isso, o carvão começou a não partir, o papel a não manchar, o miolo de pão a manter a plasticidade, o fôlego a aumentar. E a confiança. O Rio Douro tornara-se tranquilíssimo, e assim a amizade entre nós. Todas as manhãs seguíamos os altos muros de Nova Sintra, passávamos o posto de transformação modernista, as janelas ritmadas da Escola do Barão, entre tílias, japoneiras e glicínias, pensando que talvez fossemos Artistas.
No dia do exame Isolino Vaz levou-nos à Biblioteca de S. Lázaro. O Claustro estava cheio de gente "com habilidade". Pela porta entreaberta víamos os cavaletes de pinho, dispostos em torno de um tímido Jovem Augusto.
Tiras pelo menos dezoito — disse-me Isolino Vaz. Tirei bastante menos, e também muito mais: ânsia de limpidez.
Álvaro Siza
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O que mais ressalta em Isolino Vaz é o pintor da «velha escola», honra lhe seja feita. A sua arte conhece a técnica e magnifica-a plenamente sem, no entanto, jamais atrasar o seu voo. Pelo contrário, a técnica serve-lhe para derramar ainda mais o seu estilo com uma liberdade fogosa, denotada, indómita. A pintura é, para ele, expansão de sentimentos fortes a que não falta rebeldia e uma autenticidade vigo­rosa, suada em insatisfação, uma insatisfação insaciável, devorante como a fideli­dade a si mesmo e aos seus motivos. Compreende-se bem que Ferreira de Castro tenha falado certo dia (como agora ouço dizer) desta insatisfação de Isolino Vaz: apreciava «Emigrantes», quadro que o romancista considerou admirável. Tão absor­vente é a arte para este artista que ele vem descurando, quase até ao exagero, os afãs que a outros seduzem. Aplaude-se, por isso, com a maior satisfação, a inicia­tiva desta «retrospectiva». Permite começar a situar Isolino Vaz e a sua obra dentro da moldura adequada, ou seja, no enquadramento que no-la torna admirável. Não apenas para o círculo restrito, também para o largo mundo.
Arsénio Mota

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