“Família”
Tinta-da-china
39x26
cm
900,00 €
CINQUENTA ANOS DE
FIDELIDADE
Uma parte importante do
coração da minha juventude pertence a Isolino Vaz e à sua obra; através dos
volumes, dos ângulos, da luz sombria e da luminosa sombra do seu transfigurado
realismo, os meus olhos descobriam perturbadamente o lado obscuro das coisas que
só a inocência da arte revela.
A obra de Isolino Vaz
foi então isso para mim: revelação. E exemplo do radical inconformismo donde
nascem, como na obra de Isolino Vaz emoções temíveis. Eram dias difíceis em que
a felicidade era feita de infelicidade e de solidariedade. A obra inquieta de
Isolino testemunhava que não estávamos sozinhos e partilhava connosco o confuso
sentimento épico da esperança.
Porque na geometria
dessa obra, mais do que mera expressão, e mais do que reprodução, vibrava, e
vibra, o próprio efémero mistério da realidade, o que quer que seja a realidade.
O modo como, sob uma luz obstinadamente racional, os fragmentos do mundo
exterior se tornam na pintura de Isolino harmonia e sentido do lado de dentro do
mundo, fizeram naturalmente dela o caminho mais curto para as inseguras
interrogações que irreprimidamente pulsavam no grande coração colectivo. A Arte
serve também para isso, para nos confrontar e para, em tempos de angústia,
testemunhar por nós perante nós próprios. Por essa fidelidade, por essa
desmesurada generosidade, quero que este depoimento seja, mais do que uma
improvável avaliação crítica, sobretudo também um testemunho emocionado pela
Arte de Isolino Vaz. Isto é, pela
Arte.
Manuel António Pina
-º-º-º-º-º-º-
Conheci Isolino Vaz no
verão de 49. A admissão a Belas-Artes passava então por uma prova de desenho de
estátua. Alguém me aconselhara a tentar um período de aprendizagem no seu
estúdio. Desenhava desde criança, mas a técnica estava limitada ao lápis Viarco
sobre papel Costaneira, Almaço raramente, sob a direcção e ao colo de um tio que
não sabia desenhar. Depois de me exercitar em caixas fechadas e abertas, cavalos
de perfil e gatos frontais, sem idade para colo, orientara a produção ao
retrato: família e vizinhos disponíveis.
Confrontava-me
subitamente com a obrigatoriedade de um salto qualitativo aterrador: do Viarco
ao carvão e do Almaço ao Ingres. As primeiras dificuldades começaram com a
procura do material aconselhável, correndo ao acaso e em vão as papelarias de
Matosinhos e do Porto. Mais tarde experimentei a fragilidade do carvão e a
aspereza do papel. Definitivamente desmoralizado, apresentei-me no atelier de
Isolino Vaz, em frente à Quinta de Nova Sintra, no sotão de uma dessas honestas
casas portuenses, três pisos em cantaria e reboco cinzento, janelas de madeira
de perfil elegantíssimo. Fui admitido e iniciaram-se as aulas. Éramos quatro e
passávamos as manhãs entre Deuses e Imperadores de brancura imaculada. A janela
da sala abria sobre o Rio Douro. O sol, o verde dos campos, e um ou outro solar
semi-arruinado entravam por ali dentro, enquanto Isolino Vaz nos ensinava coisas
inesperadas: como fixar o papel na prancheta, como apagar traços, errados com
miolo de pão, como abrir um branco cristalino, como semi-cerrar os olhos ou
apreender, braço estendido, as proporções
exactas.
Tinha uma técnica de
precisão impressionante: figuras nitidamente recortadas sobre o papel, em linhas
rectas, zonas de sombra delimitadas por dois traços finíssimos, logo preenchidos
pelo carvão deitado; rápido afago, por vezes com o flanco da mão, produzindo uma
meia tinta de transparência absoluta sobre a textura inalterada do papel
Ingres.
As duas primeiras
semanas foram difíceis: o carvão afiadíssimo partia, a meia tinta manchava, a
bola -de miolo de pão agarrava-se ao papel ou aos dedos; os Deuses troçavam de
nós, distorcendo constantemente o sorriso sereníssimo, aumentando a altura da
testa ou revolvendo tumultuosamente os cabelos
encaracolados.
No fim da segunda semana
Isolino Vaz levou-nos à praia de Leça. Não se falou em desenho. Jogamos a bola e
corremos contra o vento, até ao limite do fôlego. Deitados na areia, seguimos
com olhos espantados as passagens constantes e cadenciadas de um Mestre sem
fadiga, até que o céu e o mar se fizeram lílazes.
Provavelmente este
exercício preparava uma nova aprendizagem: como fixar o carvão, que sempre
ameaçava seguir a brisa da janela sobre o Rio Douro. Compramos um objecto
incrivelmente engenhoso: dois tubos de metal de 3 milímetros de diâmetro e 100
milímetros de comprimento, articulados, para mais fácil transporte em caixa de
cartão branco. Introduzia-se uma ponta no frasco de fixativo Legrand, comprado
na papelaria Azevedo; na outra soprava-se com brandura. O sopro devia ser
contínuo e de igual intensidade. Nas primeiras experiências as superfícies
sombreadas do carvão tornavam-se baças, pontilhadas por estranhas manchas
orgânicas, ou empastadas, ou brilhantes aqui e ali, ou amareladas, como verniz
barato sobre as madeiras da Rua da Picaria, ou como o papel de um cigarro sem
filtro e mal fumado.
Isolino exemplificava.
No contra luz da janela uma fina poeira doirada pulsava, mansamente, sobre
Atletas, Imperadores, Deuses e Cortesãs.
Pouco a pouco, quase sem
dar por isso, o carvão começou a não partir, o papel a não manchar, o miolo de
pão a manter a plasticidade, o fôlego a aumentar. E a confiança. O Rio Douro
tornara-se tranquilíssimo, e assim a amizade entre nós. Todas as manhãs
seguíamos os altos muros de Nova Sintra, passávamos o posto de transformação
modernista, as janelas ritmadas da Escola do Barão, entre tílias, japoneiras e
glicínias, pensando que talvez fossemos Artistas.
No dia do exame Isolino
Vaz levou-nos à Biblioteca de S. Lázaro. O Claustro estava cheio de gente "com
habilidade". Pela porta entreaberta víamos os cavaletes de pinho, dispostos em
torno de um tímido Jovem Augusto.
Tiras pelo menos dezoito
— disse-me Isolino Vaz. Tirei bastante menos, e também muito mais: ânsia de
limpidez.
Álvaro Siza
-º-º-º-º-º-
O que mais ressalta em
Isolino Vaz é o pintor da «velha escola», honra lhe seja feita. A sua arte
conhece a técnica e magnifica-a plenamente sem, no entanto, jamais atrasar o seu
voo. Pelo contrário, a técnica serve-lhe para derramar ainda mais o seu estilo
com uma liberdade fogosa, denotada, indómita. A pintura é, para ele, expansão de
sentimentos fortes a que não falta rebeldia e uma autenticidade vigorosa, suada
em insatisfação, uma insatisfação insaciável, devorante como a fidelidade a si
mesmo e aos seus motivos. Compreende-se bem que Ferreira de Castro tenha falado
certo dia (como agora ouço dizer) desta insatisfação de Isolino Vaz: apreciava
«Emigrantes», quadro que o romancista considerou admirável. Tão absorvente é a
arte para este artista que ele vem descurando, quase até ao exagero, os afãs que
a outros seduzem. Aplaude-se, por isso, com a maior satisfação, a iniciativa
desta «retrospectiva». Permite começar a situar Isolino Vaz e a sua obra dentro
da moldura adequada, ou seja, no enquadramento que no-la torna admirável. Não
apenas para o círculo restrito, também para o largo
mundo.
Arsénio Mota
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